A americana Trish Vradenburgh, que sempre trabalhou com discursos políticos e roteirizou seriados de televisão, resolveu aventurar-se no teatro escrevendo essa peça, dizem, a fim de superar a perda da mãe, tendo novamente a oportunidade de vê-la viva, ali na sua frente, através da interpretação de uma grande atriz.A Graça da Vida é, basicamente, uma história de amor entre pais e filhos, em cujo desenrolar vários temas são abordados com uma leveza impressionante.
Trata-se de uma encenação gostosa de ser assistida, com um texto delicioso de ser ouvido e, acredito, de ser dito. Tudo muito simples, mas que me deixou uma sensação boa, embora reconhecíveis vários furos, a irregularidade do elenco e a incongruente reviravolta no final. No entanto, todos esses aspectos negativos não tiram a sensação de ver grandes interpretações em cena.
De um lado está Kate, uma escritora de sucesso de seriados para TV, louca por trabalho, que praticamente só pensa nisso e mantém uma vida amorosa complicada. Do outro, Grace, uma mãe dominadora que chega sempre em horas indesejáveis. As duas mantêm uma relação conflituosa, que vai da intolerância ao carinho, sempre com muito humor. É calcado na relação mãe e filha que o texto, e a peça, atingem o seu melhor, nos embates freqüentes das personagens e no acerto de contas que, indiscutivelmente, gera grandes interpretações. Kate sabe que precisa dar mais atenção à sua mãe, mas só cai na real quando Grace se descobre com mal de Alzheimer. A partir desse momento, o da deterioração da mãe, é que a filha muda completamente seu jeito de agir.
Num primeiro momento, questionei o porquê da peça ser dividida em dois atos, mas, depois, constatei que , na verdade, há uma peça no primeiro ato, e outra depois. Se, no primeiro, temos um belo texto, emoldurado por um igualmente belo embate de atrizes, no outro ocorre uma reviravolta absurda, que quase consegue fazer com que a peça vire uma piada, uma vez que, em se tratando de uma obra realista e atual, A Graça da Vida não poderia usar de realismo fantástico, imaginação extraordinária ou coisa que o valha.
Em torno das duas figuras centrais da peça, existem outros personagens que fazem parte de suas vidas, personagens esses que, com a exceção do pai, poderiam ser apenas citados. A estrela do seriado que Kate escreve e um funcionário da TV, por exemplo, são totalmente desnecessários, ainda mais com a interpretação caricata de Fábio Azevedo e o trabalho de Clara Carvalho, que não diz a que veio. Eliana Rocha grita em cena para fazer sua Lorna cômica, mas só consegue enganar os mais desavisados; Ênio Gonçalves, na pele do pai, é o maior canastrão de todos os tempos, não conseguindo segurar em nenhum momento o personagem, e, por fim, o único que se salva desta parte do elenco, é o sempre talentoso Emilio Orciollo Netto, que vive o médico de Grace de forma dura quando tem que falar da doença da mãe e com docilidade quando se apaixona pela protagonista Kate.
No elenco principal, Graziella Moretto é uma grata surpresa. Avalizada por grandes produções como Avenida Dropsie e Beijo no Asfalto, a atriz é mais conhecida do grande público pela sua inegável veia cômica, mas aqui nos mostra que é uma intérprete completa, e de mão cheia, conseguindo cumprir com perfeição a tarefa de encarar, de igual para igual, a maravilhosa Nathalia Timberg sem, em nenhum momento, escorregar. Mantém um bate-bola fantástico, e enfatiza ao espectador a delícia que é assistir a duas atrizes desse porte. E Nathalia é perfeita, desde quando entra em cena, com uma vivaz Grace, até quando acaba em uma cadeira de rodas, passando, momento a momento, as sutilezas da deterioração que a doença causa nas pessoas. E tudo isso só não é melhor por causa do ritmo frenético da ação, com muitos cortes que deixa a apresentação muito televisiva, provavelmente por conta do trabalho da autora.
Não se pode deixar, ainda, de ressaltar a maravilha do figurino usado pelas protagonistas, tudo de muito bom gosto: Graziela desfila vários modelos em cena, cada um mais lindo que o outro, trabalho brilhante da figurinista Giovanna Moretto. Cenário, iluminação e trilha sonora sem grandes destaques, mas tudo bem feito.
A Graça da Vida vale, basicamente, pela dupla Timberg-Moretto. Portanto, se você não gosta de nenhuma das duas, não há motivo para assistir; mas, se você quer ver um belo embate de duas atrizes em plena execução de seu ofício, vá fundo. Nathalia Timberg e Graziella Moretto são literalmente a graça da peça.
Cotação: Bom (***)
Serviço: A Graça da Vida
De: Trish Vradenburgh
Adaptação: Paulo Autran
Direção: Aimar Labaki
Com: Nathalia Timberg, Graziella Moretto, Ênio Gonçalves, Eliana Rocha, Clara Carvalho, Fábio Azevedo e Emílio Orciollo Netto